Leia um trecho do livro Esqueletos no Armário

Gabriel da Conceição

Prólogo

O corpo do homem morto seguia boiando entre troncos e folhas. Uma faixa vermelha escorria manchando a camisa azul clara e se esvaindo pelas águas escuras. Tinha uma calça cinza rasgada em uma das pernas e um dos pés estava descalço exibindo um pé esbranquiçado e enrugado.

Era final de abril, o inverno estava longe de começar, mas uma fumaça evaporava das águas, naquele território há muitos anos uma antiga vila de moradores foi retirada do local para construção de uma represa que prometia progresso para a região. As 6h da manhã de uma segunda-feira, quando os primeiros raios de sol surgiram entre as montanhas que circundavam a cidade, Manoel, o guarda noturno, espreguiçou-se, encheu mais uma xícara de café para afugentar o frio e o sono enquanto estava sentado na guarita esperando o fim do expediente e a troca de turno.

O pequeno rádio sintonizado nas primeiras notícias do dia anunciava tempo seco e frio para os próximos dias, costumeiro daquela época. O comentarista estava falando sobre o desempenho dos times locais, Metropolitano que havia perdido o último jogo em casa e a situação do Caravaggio que vinha melhorando a cada partida e prometia uma temporada conflituosa entre os rivais.

“Um pouco de cachaça para esquentar”, ofereceu Alfredo aproximando-se do colega, era bem mais novo que o outro. 

Estendeu um volume metálico para o parceiro. Manoel pensou em recusar, mas tomou um gole, não seria fácil voltar para casa e encarar a mulher depois do que fez. 

“Eu não posso mais fazer isso”, disse tomando mais um gole. “Preciso contar para minha mulher…” 

Alfredo o encarou, o isqueiro ligado e o cigarro entre os lábios. 

“Você está louco! Vocês têm um filho para criar”, disse tragando o cigarro enquanto se escorava na mureta que impedia que algum descuidado caísse nas profundezas.

 Olhou a vastidão, a fumaça saindo de sua boca e se perdendo no ar frio. Algo ao longe lhe chamou atenção, uma forma indistinta boiava sobre as águas e um urubu já sobrevoava o local. 

“Tem alguma coisa na água”, disse com a voz acelerada. 

“Deve ser algum animal morto”, disse Manoel com a mochila nas costas, pronto para ir embora. 

Era comum algum animal morrer enquanto tentava se alimentar de detritos nas margens do rio ou por caçadores que apreciavam as carnes dos animais silvestres. 

Alfredo jogou o cigarro fora, um desperdício, pensou ele. Correu até a guarita e pegou um binóculo. Ajustou o objeto nos olhos e procurou pelas águas, até encontrar. 

 “Tem alguém afogado, Manoel!”, gritou passando o binóculo para o amigo que não acreditou no que estava vendo. 

Os dois saíram em disparada. Chegaram até a parte mais baixa da mureta onde uma escada dava acesso a um pequeno cais com um barco movido a motor, branco com as bordas vermelhas, era usado pela equipe para retirar detritos. Empurraram o barco até a água, havia remos em caso de falha mecânica. Manoel engatou a chave, mas nada aconteceu, estava nervoso e o motor não queria colaborar. 

“Esqueceram de colocar gasolina nessa merda!”, gritou girando a chave mais uma vez e por fim o motor rugiu dando a partida enquanto um bando de pássaros alçou voo espantados com o barulho. 

Enquanto o barco se movia pelo lago e uma brisa gélida remexia seus cabelos, uma sensação queimava por dentro dos dois, um frio na barriga, uma leve vertigem, como se algo de muito ruim estivesse acontecendo. 

“Parece ser um homem”, gritou Alfredo escorado na frente do barco para poder avistar melhor. “Porra!!! É a merda de um homem morto!!!” 

Os dois aproximaram-se do local, o homem estava de costas e o sangue ainda escorria do corpo e batia nas laterais do barco. Havia galhos e folhas presas nas roupas, como se tivesse sido arrastado antes de ser jogado nas águas. 

“Vamos sair daqui”, disse Manoel virando o volante do barco a fim de sair do local. 

Alfredo não ouviu o parceiro e pegou os remos reservas, que vieram a calhar muito bem naquele momento. 

“Você vai ficar resmungando ou vai me ajudar?”, perguntou estendendo o outro remo. 

Com a ajuda dos remos, os dois aproximaram o corpo do barco e viraram o homem morto quase se desequilibraram em cima do barco tamanho foi o choque ao verem o homem pálido com os olhos arregalados e um tiro no meio da testa onde o sangue insistia em sair vagarosamente. 

“Temos que avisar a polícia”, disse Alfredo com um nó na garganta. 

Manoel não aguentou o cheiro do sangue, estava um pouco trôpego, talvez fosse o trago que havia bebido minutos antes e o álcool já estava fazendo efeito deixando sua mente um pouco turva. Vomitou sujando o barco e a água. 

“Porra Manoel!!!”, gritou Alfredo irritado. 

Voltaram até o caís. Um silencio sufocante. Manoel ainda estava escorado na beira do barco e Alfredo teve que assumir o volante, seu casamento ia de mal a pior e agora teria que enfrentar aquele dia respondendo perguntas e mais perguntas dos policiais. 

Chegaram até a guarita e ligaram para a emergência. 

“Encontramos um homem morto na barragem”, disse preparando-se para a enxurrada de perguntas que viriam logo em seguida.

Gabriel da Conceição

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